Doces tolices

Capítulo IV

Posted on: 22/04/2011

Finalmente – e deve ser contra qualquer manual ralé de estruturas narrativas iniciar um capítulo com essa palavra -, voltemos o foco para a bailarina tristonha.
Logo depois de sair fugida do espetáculo e do palhaço, e depois de juntar seus cacarecos no trailer roxo, parou em uma lanchonete não muito longe do circo para comer um gorduroso hambúrguer.

Uma vez que havia decidido largar a lona, não havia razão para continuar sua dieta. E um hambúrguer agora conteria toda catarse que Édipo nenhum jamais alcançaria.

Quando o lanche chegou, seus olhos brilharam do mesmo jeito com que o palhaço sonhara motivar. As batatas fritas – não existe hambúrguer sem batata frita, repetia – iam gostosamente à sua boca e eram estraçalhadas com a saliva que abundava tão logo tocavam a lingua da bailarina. Não há melhor sensação do que a satisfação da gula (embora as tias católicas alertem para a eterna insatisfação do pecado capital).

A jaqueta jeans desbotada propositalmente (pelas mesmas brilhantes  indústrias que pregam o penteado meticulosamente bagunçado) cobria boa parte de seu colant. O tutu já estava na sua vellha mala marrom, disputando espaço com as sapatilhas, os infinitos laços, livros e bexigas (ela gosta de enchê-las pouco antes de dormir). O cabelo todo repuxado e lambuzado de gel com glitter, porém, a entregava – apesar de a forte maquiagem já estar apagada, fazendo seu anguloso rosto desnudo exibir destemido algumas poucas rugas na região da testa e dos olhos grandes e castanhos.

Sua mala era pequena, mas suficiente para dar pinta de que a bailarina estava de viagem. O balconista, ao vê-la carregando o objeto com alguma dificuldade, selecionou a abordagem mais óbvia do Livro de Abordagens Estúpidas por Desconhecidos: “Fugiu de casa, é?!”. Esta frase divide o pódio com “Ah! Pra mim?! Não precisava!”. Infelizmente esse livro vazou do Circuito dos Bares e Lanchonetes para alcançar círculos sociais desagradáveis já na essência, como o Círculo dos Parentes Distantes.

À abordagem criativa, ela valeu-se da resposta mais universal: sorriu suspirando e apertando os olhos, expressão maravilhosa que consegue economizar bastante tempo ao dizer “Amor, não estou com bom humor hoje. Mas não percamos tempo. Esta é uma relação historicamente impessoal e prefiro que continue assim. Desculpe se estou sendo grosseiro/grosseira, não quero te ofender. Passado isso, estamos numa boa? Fico feliz!”. O balconista compreendeu e anotou o pedido.

Quando a última mordida abocanhou o resto do lanche, um sentimento imperioso começou a se formar: tinha que que encontrar um lugar para ficar (apesar de não gostar de rimar ao pensar…). Na antepenúltima batatinha (a 3ª maior), percebeu que não lhe restavam muitas opções: não conhecia ninguém por ali, sua família toda estava na Rússia contando a quem quisesse ouvir que sua menina havia viajado com um renomado grupo de balé classico – pelo menos essa foi a última versão combinada entre eles-, tinha pouco dinheiro e auxílio-desemprego era uma piada entre o povo circense, além disso, não cogitava dormir na rua ou gastar suas poucas notas com essa questão.

Apenas a certeza de estar mais feliz agora não a jogava no abismo da falta de alternativas.

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